sábado, 19 de maio de 2007

Intervenção de Andre Yon no Encontro de 14 de Abril


Para que é que pode servir a intervenção de um sindicalista francês na discussão que tem estado a ter lugar aqui esta tarde? Os meus colegas franceses ficariam aterrorizados se tivessem ouvido o que eu tenho estado a ouvir. Se há um ponto comum entre a situação francesa e a portuguesa, eu creio que é a questão do respeito da democracia, que se coloca de modo dramático. No meu país, a 29 de Maio de 2005, o povo votou massivamente pelo não ao projecto de Tratado Constitucional Europeu. E, com base neste elã, alguns meses depois, a juventude e muitos trabalhadores do meu país, manifestaram-se aos milhões contra a modificação do Código do Trabalho que o Governo pretendia fazer.
Portugal, a França e os outros países da Europa são grandes nações, mas perderam a sua soberania.
Eu começarei pelas grandes questões que já foram abordadas esta tarde.
Primeiramente, o camarada responsável sindical que evocou a dupla carreira, quer dizer, a destruição do estatuto dos professores em Portugal. De onde vem um golpe tão grande não só para os direitos dos professores, mas também para os dos seus alunos? Em Outubro de 2000, a União Europeia (UE) adoptou um memorando acerca da aprendizagem ao longo da vida. Leio: “Os professores e os formadores tornar-se-ão guias, tutores e mediadores. O seu papel é ajudar os aprendizes, de modo a que estes tomem, o mais possível, a cargo a sua própria formação.”
O que está aqui indicado é a negação do papel de um professor especialista de uma disciplina e encarregue pelo Estado, pela República de transmitir os conhecimentos que ele domina. A colega que leu o poema, do qual eu, infelizmente, não pude tirar o devido proveito por causa do obstáculo da língua, insistiu sobre o espezinhamento da cultura que se verifica hoje em dia. Se eu tomar em conta o que o Parlamento Europeu votou no documento “As oito competências-chave para a educação e a aprendizagem ao longo da vida, num quadro de referência europeu”, constato que a aprendizagem da língua materna é definida pela UE como “comunicação”. Quer dizer, que, na cúpula da UE, o seu parlamento, são postas de lado, não somente a gramática e a sintaxe – sem as quais não podemos pensar, mas também todos as belezas e a profundidade da Literatura. Estas serão interditas, a partir de agora, à grande maioria do povo. Eu fiquei absolutamente estupefacto com o que ouvi acerca das disciplinas de que o Estado se desresponsabiliza, sob o pretexto de ter um orçamento insuficiente. É claro que a UE, também neste assunto, não pára, desde há anos e anos, de insistir para que os Estados baixem as despesas públicas. Nenhum investimento é possível, em matéria de instrução pública, sem o empenhamento do Estado, aumentando, ao contrário, as despesas públicas. É uma marca civilizacional. E o mesmo se passa com a Saúde.
Eu vi os números (que acabaram de ser apresentados) respeitantes às despesas com a saúde por pessoa em Portugal. Vocês podem dizer aos vossos governantes, aos vossos dirigentes, aquilo que nós temos vindo a repetir aos nossos para defender a nossa Segurança social, embora o sucesso que obtivemos até agora seja muito limitado: “Aumentar as despesas com saúde é uma marca civilizacional”.
Vou retomar agora a exposição que tinha preparado.
Penso que a primeira parte nos devemos concentrar no problema da contestação do quadro jurídico da nação. Aquilo que conquistámos durante dezenas de anos, ou mesmo durante séculos – nós, muito particularmente, com a Revolução francesa, vocês com o 25 de Abril de 1974 – representam conquistas sociais ganhas, de ano para ano, de década para década, de geração para geração. É o caso do Código do Trabalho. É a possibilidade, para um assalariado, de ter um contrato de trabalho estável, com um verdadeiro salário.
Com a mundialização, com a concorrência, numa situação em que existem países onde a mão-de-obra é dez vezes menos cara do que no nosso país, é bom tudo o que serve para destruir o que faz o valor da força de trabalho. Insere-se neste quadro, em particular, a destruição da Escola.
A tradução política disto hoje, para os governos que foram criticados em particular pelo colega que me precedeu, não é, em primeiro lugar, o facto de serem corrompidos – mesmo se eles o são, quando gastam as verbas públicas do modo como o fazem. Aquilo que lhes reprovamos, em primeiro lugar, o primeiro acto de acusação que podemos apresentar contra eles, é de abandonarem a soberania que o povo lhes deu. 80% das decisões tomadas por qualquer Governo europeu são apenas transposições de directivas da União Europeia. São corrompidos, mas antes de tudo lacaios.
É verdade que os serviços públicos constituem conquistas, na nossa sociedade civilizada. A União Europeia obriga a que sejam feitas economias em relação a esses serviços públicos e, desta maneira, leva à sua privatização.
Como ela sabe que a população é contra a privatização destes serviços públicos, é obrigada a mentir. Assim, ela não fala de serviço público mas de “serviço de interesse geral”. Ela esconde à população que um “serviço de interesse geral” pode ser assegurado por uma sociedade privada. E, a partir daqui, logo à partida não pode ser assegurado ao público esse serviço.
É assim que uma carta que, em França, chegava ao seu destino no dia seguinte a ter sido metida na caixa do correio, leva agora três ou quatro dias.
E, aqui, vou retomar o exemplo citado pelo colega há pouco das parcerias público-privadas.
E o que é terrível é que as nossas próprias organizações sindicais se deixam cair na armadilha destas iniciativas.
Para estabelecer o seu conteúdo, cito o que dizia a ONU, em 2001: “Contudo, os Estados não podem fazer o trabalho sozinhos. Temos necessidade de uma sociedade civil activa e de um sector privado dinâmico. A sociedade civil e o sector privado ocupam uma parte cada vez maior e mis importante do espaço dantes reservado aos Estados.”
E a União Europeia vai ainda mais depressa do que a ONU. Ela diz que “os parceiros privados são livres, por princípio, de subcontratar uma parte ou a totalidade de um mercado público ou de uma concessão.”
Uma última citação, desta vez dos responsáveis sindicais da Confederação Europeia dos Sindicatos (CES), que dizem: “As parcerias público-privadas permitem implicar o sector privado nos serviços de interesse geral.”
Temos aqui implementado o mecanismo, a fórmula jurídica finalmente encontrada, para a privatização dos serviços públicos.
Nesta parte da minha intervenção, vou mostrar quais são as consequências disto em relação à Escola.
Em França, tal como aqui, trata-se – em primeiro lugar – de cortes orçamentais. Vinte e sete mil postos de professores dos colégios e dos liceus (que têm alunos dos 11 aos 18 anos) foram suprimidos nos últimos cinco anos, no meu país. E, no mesmo período, também quarenta e seis mil postos de auxiliares de educação em cem mil (ou seja, cerca de metade suprimidos).
Isto para nós, tal como para vós, tem como consequência o aumento da violência e dos actos de agressão contra os professores e os vigilantes.
Nada é mais bárbaro do que a agressão de um professor. Não se trata de um acontecimento sem importância: é a República, é a democracia, é a instrução que são atacadas. É claro que não são os jovens os primeiros responsáveis desta situação, mas sim aqueles que impedem a Escola de fazer o seu trabalho.
Aos cortes orçamentais junta-se a modificação do papel da Escola em relação à economia.
A Escola pública forma cidadãos livres.
A Escola ao serviço das empresas prepara assalariados sem defesa, sem uma verdadeira qualificação, mas capazes de se adaptarem a todas as situações, naturalmente recebendo salários miseráveis, e preparados para serem despedidos de um dia para o outro.
Este ataque aos diplomas que a Escola fornece tem consequências imediatas para todos os assalariados. A negociação dos contratos de trabalho deixa de poder fazer-se com base em referenciais nacionais, passando a ter por base uma relação de forças local, sempre desfavorável ao assalariado.
Quero assinalar também que esta “reforma” modifica o lugar político da Escola. Já falámos desta questão quando referimos a maneira como a Literatura é espezinhada. É evidentemente muito grave.
Enquanto membro do Conselho Superior da Educação, em França, participei na semana passada numa reunião de trabalho para examinar o Projecto do ministro sobre os programas dos colégios (alunos entre 11 e 15 anos) respeitantes às Ciências.
Eles querem impor-nos novidades extremamente graves. Em primeiro lugar, aquilo a que em França chamamos “programas não elegíveis (obrigatórios)”. O ministro inventou um “SMIC” (sigla de salário mínimo em França, limiar mínimo - NdT) cultural: um “soco comum” de conhecimentos.
A partir de agora, eles querem que o programa seja composto por dois círculos concêntricos. Na realidade, este programa é um “não-programa”. O professor deixa de saber o que deve ou não ensinar aos alunos.
No final do 3º ano (como em França os níveis são contados ao contrário, isto respeita a alunos com 15/16 anos – NdT) o que é exigido a um aluno é que conheça o “soco comum”, o que corresponde ao que se ensinava até aqui aos alunos de 13 ou 14 anos, no início do nível anterior.
Se houver aqui na sala professores de Física, quero mostrar-vos o que isto representa em termos de programa. No capítulo sobre “A água”, a única coisa que é obrigatória é saber que “a água está omnipresente no nosso ambiente, à nossa volta, particularmente nas bebidas e nos organismos vivos”. É este o “soco comum”.
A escola em França está num plano bastante inclinado. Comparemos com o que consta do programa actualmente em vigor, que vai deixar de ser obrigatório: “Realizar o teste de reconhecimento da água, através de sulfato de cobre anidro. Descrever este teste. Voltar a realizar o teste do reconhecimento da água através de sulfato de cobre anidro, para distinguir meios que contêm água de meios que a não contêm.”
Peço perdão por este aspecto muito técnico, mas ele é dramaticamente eloquente.
Queria terminar referindo um aspecto mais positivo.
Quando se ataca a democracia através da Escola, liberta-se a possibilidade de que a massa dos professores, dos pais dos alunos e dos laicos se ponham em movimento para a defender.
Ao ouvir-vos, há pouco, no que respeita ao 1º ciclo, fiquei com medo. Em França, o Governo visa agrupar as escolas em redes, com várias dezenas de escolas, com um Conselho de Administração composto maioritariamente por eleitos políticos, ajudado por um director escolhido entre os da sua classe para controlar os seus colegas.
Penso que isto se assemelha bastante à vossa “segunda carreira”. Este Conselho de Administração teria poder para definir o conteúdo do ensino e para recrutar os professores e os restantes funcionários.
Como vocês, nós temos muito orgulho na unidade da nossa nação, mas estamos certos que com esta “reforma” haverá desigualdades generalizadas entre os diferentes territórios da nossa nação.
O factor de esperança é que em quarenta dos departamentos da França (quase metade do total) e, em particular, toda a região de Paris e arredores, foi realizada a unidade entre os principais sindicatos dos professores (CGT-Force Ouvrière e FSU) para a retirada deste projecto de decreto.
Atendendo a que vão realizar-se eleições presidenciais dentro em breve, talvez eles não tenham tempo de publicar o decreto antes da sua realização. Será apenas um recuo, mas nós saberemos utilizá-lo para melhor nos defendermos.
Nos liceus e nos colégios, o ministro decidiu modificar o serviço dos professores. Até agora um professor tinha que assegurar dezoito horas de cursos por semana, na sua disciplina de recrutamento. É isto que constitui a base da sua independência em relação ao Director e a todos os grupos de pressão ao nível local, podendo assim consagrar toda a sua qualificação para transmitir os conhecimentos aos seus alunos, no quadro do programa nacional.
Com o novo decreto, os professores terão que completar o seu serviço noutras disciplinas que não aquela para que foram recrutados, terão que ensinar em vários estabelecimentos de ensino e que obedecer a projectos locais. Trata-se do fim de uma época.
Julgo ter compreendido que vocês têm uma etapa de avanço sobre nós na descida para o inferno.
Creio que é preciso reter como elemento mais importante daquilo que tanto vocês como nós temos a defender: o estatuto da carreira docente.
Sobre isto também existe um outro factor de esperança. O que se passou em França, desde o Outono passado, e que nunca tinha acontecido desde que sou professor (e já não sou assim tão jovem!): houve unidade de todas as organizações sindicais dos liceus e dos colégios para a revogação do decreto que foi publicado no passado dia 12 de Fevereiro.
Não tenho muita confiança de que as eleições presidenciais vão fazer mudar esta situação. Mas estou persuadido que este assunto, apesar de ter sido publicado o decreto, não está terminado. O nível de consciência e a necessidade de unidade são muito grandes. E começámos a compreender que nos é absolutamente necessário romper com as directivas que nos chegam de Bruxelas.

A formação ao longo da vida parece ser uma bela fórmula. Mas, na realidade, ela é utilizada como negação da formação inicial. Só a formação inicial é um direito que pode ser garantido pelo Estado para todos.
É uma característica de qualquer República garantir este direito a todos os jovens, qualquer que seja a riqueza dos seus pais. Somos favoráveis a todas as possibilidades de formação na fase adulta das pessoas, mas a formação ao longo da vida é uma frase vazia se não houver garantia da formação inicial.
Durante a vida, tudo pode acontecer. O desemprego, a doença e todos os acidentes da vida. O “percurso individual” não pode, de modo nenhum, substituir a formação no início da vida. A formação ao longo da vida é uma adaptação, a maior parte das vezes, às necessidades da economia.
Queria concluir com uma citação de Jean Jaurès (não sei se a maioria de vocês o conhece). Pouco importa, mas a frase é importante para nós, para vocês em Portugal e em todo o lado: “Quando se renuncia a querer mudar as coisas, mudam-se as palavras.”
Substitui-se “conhecimento” por “competência”.
Substitui-se “diploma” por “crédito” ou “atestado”.
Substitui-se “qualificação” por “adaptabilidade”.
E constitui o fim dos direitos.
O nosso combate deve ser para que todos os sindicatos e todas as forças políticas progressistas fiquem agarradas não às palavras mas à realidade da Escola pública.
Para que não se deixem cair na armadilha de pretensas modernizações, inspiradas pela União Europeia e que apenas consistem na destruição das nossas conquistas. Conquistas que estão na base de qualquer civilização.
E que todas estas forças façam a unidade para respeitar o seu mandato e organizar o combate.

André Yon, professor sindicalista francês

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