sábado, 5 de maio de 2007

Maria do Carmo Vieira: Em Defesa da Escola Pública

Levar os alunos a reflectir sobre a sua própria condição humana é um objectivo cujo cumprimento todo o professor se deveria exigir. No entanto, actualmente, tudo parece conjugado no sentido de o impedir, assistindo-se à mais completa infantilização e imbecilização dos alunos, através da elaboração de programas e esvaziamento dos seus conteúdos e imposição de estranhas pedagogias, que mais não fazem que acentuar o fosso entre ricos e pobres. É porque rejeito este status quo que sou apelidada pelo Ministério de Educação de elitista e por isso lhes respondi que elitistas seriam eles e as suas orientações, pois se não fosse a Escola a acrescentar algo ao discurso que os alunos, socialmente mais fragilizados, trazem de casa, quem o faria?

Pedagogo e intérprete da nobreza da pedagogia, o grande maestro e violinista Yehudi Menuhin salientou a importância da Cultura e da Arte no Ensino, dirigido a todos sem excepção, referindo a Escola como o lugar privilegiado para o fazer. Não se concretizando este objectivo fundamental, continua Menuhin, estaremos «a criar monstros», ou seja, pessoas insensíveis à sua própria condição humana.

Somos todos conhecedores da violência que grassa na Escola, denunciando a irresponsabilidade de quem pratica esses actos, a que se associa a ausência de valores humanistas. Na minha Escola, por exemplo, um aluno justificou candidamente que «só atirara a cabeça do colega contra a parede», quase indiferente às consequências do seu gesto brutal, de que resultou um traumatismo craniano para o seu companheiro.

A par da violência na Escola caminha a falta de exigência, com a agravante da última ser veiculada pelo próprio Ministério da Educação, cujas orientações vão no sentido do facilitismo lúdico e do recreio na sala de aula, transformando-se o professor no camarada, que sabe tanto quanto o aluno. Ao desvirtuar-se a relação Ensinar – Aprender, esquece-se a missão de um professor e o belíssimo significado da palavra «aprender», ou seja, «prender a si próprio». O que se passa com a disciplina de Português, que lecciono, é bem exemplo dessa situação. A Literatura, que é uma Arte e não um mero tipo de texto, e associada a outras expressões artísticas nos ajuda a descobrir o mistério que somos, mistério que é também a palavra-chave em toda a ciência, é agora perversamente subestimada, tendo sido ultrapassada pelos textos dos MEDIA e pelos textos normativos. De referir ainda a estratégia da cruz e do verdadeiro e falso utilizada vergonhosamente na interpretação dos textos literários e nos próprios exames. É óbvio que isto só se consegue com a cumplicidade dos professores que aceitam obedientemente estas directrizes, não as questionando sequer.

Há uma frase sublime de Henri Thoreau que me acompanha e que nos aconselha a resistir e a desobedecer. Ei-la: «Resiste muito. Obedece pouco». Esta é uma das mensagens que desejo deixar-vos, a par do texto poético de Álvaro de Campos e da história de Demógenes e do seu prato de lentilhas.

Maria do Carmo Vieira

Abril 2007

Bem sei que tudo é natural
Mas ainda tenho coração…
Boa noite e merda!...

(Estala, meu coração!)
(Merda para a humanidade inteira!)

Na casa da mãe do filho que foi atropellado,
Tudo ri, tudo brinca.
E há um grande ruído de buzinas sem conta a lembrar
Quem tem filhos atropellaveis!
Como tudo esquece quando há dinheiro.
Bébé egual a X.

Receberam a compensação:
Bébé egual a X!
Gosam o X neste momento,
Comem e bebem o bébé morto,
Bravo! São gente!
Bravo! São a humanidade!
Bravo: são todos os paes e todas as mães!

O bébé morreu, mas o que existe são dez contos.
Isso, dez contos.
Pode fazer-se muito (pobre bébé) com dez contos.
Pagar muitas dívidas (bebésito querido)
Com dez contos.
Pôr muita coisa em ordem
(Lindo bébé que morreste) com dez contos.
Bem se sabe é triste
(Dez contos)
Uma criancinha nossa atropellada
(Dez contos)
Mas a visão da casa remodelada
(Dez contos)
De um lar reconstituido
(Dez contos)
Faz esquecer muitas coisas (como o choramos!)
Dez contos!
Parece que /*foi por/ Deus que se
(Com dez contos)
Pobre bébé trucidado!
Dez contos.

Com isso se forrou a papel uma casa.
Com isso se pagou a última prestação da mobília.
Coitadito do Bébé.
Mas, se não tivesse morrido por atropelamento, que seria das contas?
Sim, era amado.
Sim, era querido
Mas morreu.
Paciência, morreu!
Que pena, morreu!
Mas deixou o com que pagar contas
E isso é qualquer coisa.
(É claro que foi uma desgraça)
Mas agora pagaram-se as contas.
(É claro que aquelle pobre corpinho
Ficou triturado)
Mas agora, ao menos, não se deve na mercearia.
(É pena sim, mas há sempre um allivio.)


Álvaro de Campos

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